Pawel Kuczynski
Paranóia
política e usos do passado
“Pouco me importa que os
‘revisionistas’ sejam da variedade neo-nazi ou da variedade da
extrema-esquerda; que eles pertençam, no plano psicológico, à variedade
pérfida, à variedade perversa, à variedade paranóica ou tão simplesmente à
variedade imbecil, não tenho nada para responder a eles e não responderei. A
coerência intelectual tem este preço.”
Pierre-Vidal
Naquet
Opinar
é preciso. Em tempos nos quais as palavras circulam de forma intensa, extensa e
simultânea, mais do que navegar pelos mares virtuais da rede mundial, opinar é
preciso. E opinião, no fundo, é algo fácil de possuir e de manifestar: requer
pouco esforço intelectual, um mínimo domínio da língua, a originalidade não é
requisito, tampouco o é o respeito a alguns pressupostos éticos. Hoje em dia,
ao invés de fatos ou de experiência, o ambiente da grande mídia é feito de
opiniões. Quanto a isso não há muito que lamentar, uma vez que a liberdade de
expressão tem seus preços.
Recentemente,
o economista Rodrigo Constantino manifestou em coluna hospedada no portal de
informação da revista Veja suas opiniões a respeito de um personagem histórico
cujo semblante foi tornado uma peça de massificação no imaginário social desde
algumas décadas (clique aqui). Para Constantino, longe de elaborar
qualquer tipo de reflexão mais apurada, Che Guevara não passou de um “facínora”,
um “assassino frio”, um “verdadeiro crápula”, “covarde” e “filhinho de mamãe”,
um “sujeitinho que a esquerda tanto gosta”. Amparado pela leitura de uma obra
que é ali sugerida como a “verdadeira” história do personagem, o autor desfila
seus impropérios travestidos de opinião crítica, alimentando com isso seu gosto
pela polêmica. Polêmica, aliás, que lhe serve para definir sua persona midiática: “um liberal sem medo
da polêmica”.
As opiniões sobre o médico e revolucionário argentino são inseridas no contexto de
uma já redundante crítica a um suposto doutrinamento intelectual que estaria
ocorrendo nas instituições públicas de ensino superior no país. Algumas
considerações sobre isso já foram elaboradas de forma pertinente por docentes
universitários (clique aqui). No caso aqui em questão, a suposta
prática doutrinadora aconteceria “a todo vapor” na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, por conta da IV Jornada de História da Historiografia promovida pelo
GT Teoria da História a Historiografia, vinculado à ANPUH-RS. O cartaz do
evento, que tem por título “Passado: modos de usar. Sobre os usos públicos da
história” e representa um jogo estético com a famosa imagem de Che Guevara, é
ali colocado com a seguinte legenda: “a imagem de um facínora assassino
estampada em um evento sobre o uso político da história? O que os alunos vão
aprender? Como transformar um assassino frio e sedento por sangue em um herói
da justiça social?”.
Assim
como certas ironias escondem em seu âmago nada mais do que puro cinismo, o mero
gosto pela polêmica despropositada traz o perigo de diluir o espaço do debate
que é e deve ser sempre um espaço público. A polêmica verborrágica, salivada
por meio da ofensa, amparada por uma ilusória e unívoca versão verdadeira sobre
a história, nada mais é do que a manifestação de uma opinião privada,
individual e singular, que desconstrói o âmbito do diálogo impossibilitando,
pela sua inerente recusa da dimensão pública do debate intelectual, qualquer
forma de discussão coletiva proveitosa. Dessa maneira, a este tipo de opinião
não resta nada além da concordância ou da discordância, as quais acabam por se
manifestar igualmente na forma de outras simples opiniões.
Por
trás da fala do colunista, evidencia-se não apenas a ojeriza que certos setores
conservadores alimentam em relação àquilo que eles próprios definem, embora sem
especificar os princípios norteadores desta definição, como pensamento de
esquerda e, por uma analogia simplória, como ideologia marxista. Há mais do que
isso. Existe ali um perigoso intento de revisionismo histórico que assume
feições variadas, mas que se aproximam todas por um denominador comum: a
ausência de reflexão sobre os fundamentos pelos quais as diferentes formas de
saber histórico podem ser elaboradas. Neste caso, o que era para ser uma crítica transforma-se em um redivivo
macartismo, que rotula, ataca e interdita qualquer possibilidade de debate,
transformando a ação intelectual num duelo entre os “bons” e os “maus”.
Este
texto, portanto, como a epígrafe acima colocada já o indica, não é uma resposta
dirigida a Rodrigo Constantino. Como Pierre Vidal-Naquet já alertou, “um
diálogo entre dois homens, fossem eles adversários, pressupõe um terreno em
comum, um comum respeito, nesta circunstância, à verdade. Mas com os ‘revisionistas’,
este terreno não existe”. Ele é, pelo contrário, uma tomada de posição diante
da impostura e o aproveitamento de uma oportunidade que, ainda que pela
negativa, permite situar as questões que permearão o evento que ocorrerá na
próxima sexta-feira nas dependências da UFRGS.
Ao
questionar as diferentes modalidades de uso público do passado, as quais não
deixam de ser, por sua vez, formas de usos políticos da história, o intuito da
Jornada é criar um espaço propício à reflexão sobre o papel do saber histórico
e o lugar dos historiadores no mundo contemporâneo. Distante de qualquer
intuito doutrinador desta ou daquela ideologia, mas próximo do que pensamos ser
o papel de uma universidade pública no Brasil, trata-se de um convite à prática
do pensamento crítico como antídoto ao excesso de opiniões inoportunas que
circulam sem pudores pelos mais variados veículos de divulgação.
Levando
em conta a indagação do colunista da Veja, talvez o que os alunos ali aprenderão será não
como transformar um “assassino frio” em “herói social”, afinal o tema do evento
não é este, mas sim a gritante diferença entre a opinião imprudente e a
reflexão ponderada. Se, afinal, opinar é fácil, o exercício do pensamento
requer certo esforço e algum escrúpulo.
Coordenação do GT Teoria da História e Historiografia
Organização da IV Jornada de História da Historiografia
Olá. Gostaria de saber em que ponto do texto você refuta o que o Constantino disse. Abraços.
ResponderExcluirOlá. Em nenhum momento o texto refuta nada do que Constantino diz. Esta não foi nossa intenção: como está ali evidenciado, não se trata de uma resposta, mas sim de um posicionamento diante de um post no qual o GT foi mencionado e um breve esclarecimento sobre a natureza teórica e acadêmica de nosso evento. Abraços.
ExcluirAs pessoas leem, mas não entendem.
ExcluirOlhando a contra argumentação feita ao Constantino, se vê nada mais do que o artigo acusa o autor liberal da famigerada revista de "direita", a Veja.
ResponderExcluirIsso é querer um revisionismo também, mas da verdade, afinal de contas é bem sabido os crimes que Ernesto Guevara cometeu. Há como negar?
relendo o texto, percebe-se que o articulista nada mais faz do que acusar o adversário do que ele mesmo faz.
Não se trata de "contra argumentação", pois isto pressuporia um argumento a ser contrariado. Tampouco se trata de situar o tema na figura histórica de Che Guevara, pois o evento não é sobre ele. A questão que nos importa, sobre a qual a opinião de Constantino oferece um exemplo, é sobre as diferentes formas de uso do passado que são também, como já dito, usos políticos da história. A intenção do evento é refletir teoricamente sobre isso.
ExcluirA verdade é que o papel aceita tudo. Na grande mídia, então, o espaço é cativo do conservadorismo tacanho, que busca desacreditar fatos históricos, como a inacreditável "ditabranda" da FSP. Um exemplo do é capaz um ser humano que tem coragem de assinar um artigo ou editorial que ofende nossa inteligência. Inclusive, a emocional. Mas que tem plateia cativa.
ResponderExcluirO revisionismo de Vidal Naquet era sobre o holocausto e o negacionismo em torno dele. o que tem a ver com esse caso?
ResponderExcluirAs considerações elaboradas pelo historiador francês no livro "Os assassinos da memória" têm como eixo, de fato, a Shoah. Entretanto, como todo bom livro de história, as questões ali colocadas podem ser pensadas em outras situações diversas. Todo revisionismo é também uma forma de uso da história e do passado: algumas destas formas são honestas do ponto de vista intelectual e historiográfico, outras, nem tanto. A epígrafe e a citação de Vidal Naquet inseridas em nosso texto servem para indicar nossa postura: o uso do passado como ofensa não possibilita uma resposta, mas demanda sim uma tomada de posição.
ExcluirÓptima resposta, mas só tenho minhas dúvidas se o Constantino e seus amigos terão capacidade mental o bastante para compreender. Meus sinceros parabéns desde Portugal.
ResponderExcluirMuito bom o posicionamento do GT da ANPUH frente a tão raso e desqualificado colunista. Realmente não merece uma resposta. Infelizmente hoje qualquer opinião transforma-se em veredictos e "artigos" na imprensa. E não estou aqui cerceando o direito legitimo, porém despossuído de pertinência na área, deste senhor ter sua "opinião" bem como aos que com ele concordam. Porém, todo mundo, fala de tudo um pouco, desconsiderando qualquer aprofundamento, conhecimento de causa ou pelo menos "informação" sobre o tema. Pior ainda, quando o pretenso ""formador" de opiniões se utiliza da arte do material gráfico que divulga o evento e não do tema do qual o mesmo trata para expressar sua verve revanchista e, mesmo assim não o analisa no contexto do papel da História. A Universidade, como principio tem o papel do debate, da divergência e da convergência de idéias e posicionamentos, mas sobretudo do compromisso ético e científico que pressupõe analises com aprofundamento teórico e metodologia.
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